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quarta-feira, 6 de agosto de 2014

A dinâmica econômica nos Brics


Durante a década de 2000, o acrônimo "Brics" se consagrou por designar um grupo de países que tinham condição de apresentar rápida expansão econômica devido ao potencial de crescimento de seus mercados. Brasil, Rússia, Índia e China se tornaram importantes receptores de investimentos e se caracterizaram, naquela década, como as futuras potências mundiais. Com exceção da China, a estratégia de crescimento desses países se pautou no aproveitamento de suas vantagens comparativas em setores primários (e serviços, no caso da Índia), e do impulso da demanda asiática por esses produtos, para se colocarem como importantes players no comércio mundial. No caso brasileiro, por exemplo, foi inegável a importância das commodities no dinamismo econômico, uma vez que elas geraram renda no setor exportador e em todas as cadeias relacionadas.
Esse quadro fez ressurgir uma antiga discussão entre economistas: a complexa relação entre estrutura produtiva e crescimento econômico no longo prazo. Os debates sobre esse tema voltaram a ser bastante polvorosos. De um lado, argumenta-se que não há problemas em crescer por meio da expansão das exportações dos setores primários, pois, além de gerarem renda, essas exportações teriam um importante efeito multiplicador sobre as demais cadeias produtivas, gerando expansão da economia como um todo. Do outro lado, argumenta-se que a mudança estrutural no sentido de aumentar a produção e exportação de manufaturados e bens de alta tecnologia é necessária para o crescimento sustentado no longo prazo, principalmente quando associada às cadeias globais de valor. Segundo esta linha, apesar dos setores primários gerarem renda no curto prazo, eles são incapazes de garantir crescimento sustentado. Isto porque na indústria estariam concentradas atividades mais dinâmicas em termos de encadeamentos produtivos e tecnologia. Assim, na medida em que a economia se diversificaria, se ampliariam os ganhos de produtividade tanto no nível das firmas como no nível regional.
A estratégia para galgar patamares expressivos de crescimento no longo prazo deve levar em conta as vantagens de uma estrutura produtiva orientada para o setor manufatureiro, dinamizada quando associada a setores primários
Para contribuir nessa análise sobre a relação entre estruturas produtivas e estratégias de crescimento, foram calculados os encadeamentos dos setores para os quatro países durante a década de 2000. Analisando comparativamente o poder multiplicador dos setores dessas economias, verifica-se que a China apresenta robustos encadeamentos em quase todos os setores, enquanto que, no caso brasileiro, o único setor com resultados semelhantes é a indústria petrolífera. Isso indica que a indústria chinesa é bem mais interligada que a dos demais Brics e que, consequentemente, um aumento da demanda na China gera muito mais impacto na economia doméstica do que um aumento equivalente nos demais países. Além disso, os multiplicadores de todos os setores industriais na China são superiores a 2,00, o que significa que o efeito indireto do aumento da demanda é superior ao seu próprio efeito na economia, ou seja, que o aumento de US$ 1,00 na demanda por manufaturados na China implica em um aumento superior a US$ 2,00 na economia como um todo. Não por acaso, o setor manufatureiro na China apresenta um dinamismo tão grande.
A análise dos multiplicadores pode ser complementada pela avaliação dos índices de ligação para trás e para frente. Esses índices mostram, respectivamente, quais são os setores com maior potencial de impulsionar a economia, e quais são os principais fornecedores para as cadeias produtivas. Em todos os países, o que se verifica é que os setores manufatureiros são os que apresentam maiores índices de ligação para trás, o que significa que esses setores são os mais dinâmicos no sentido de estimular a produção da economia como um todo. Por outro lado, os setores de utilidades (água, energia e etc.), petróleo, químico e commodities minerais são os que apresentam maiores índices de ligação para frente, indicando a importância de se ter esses setores estruturados para que a economia não enfrente gargalos na produção.
Por fim, a análise dos índices de ligação puros normalizados permite avaliar a importância dos setores para a economia, tanto em termos do encadeamento, quanto em relação ao tamanho do setor. Com relação às commodities agrícolas e químicas, verificam-se valores elevados em todos os Brics, exceto na Rússia, demonstrando a importância desses setores para o desenvolvimento da indústria de alimentos, que apresenta elevados índices de ligação para trás. Porém, o setor de commodities minerais não apresenta o mesmo dinamismo. Esse indicador é superior à unidade apenas na China, o que demonstra que Brasil, Rússia e Índia exportam tais produtos com baixo grau de processamento, não se aproveitando da produção desse setor para desenvolver uma indústria metal-mecânica diversificada, tal como tem feito a China.
Assim, o que se verifica a partir dessa análise é que, apesar do termo "Brics" unir Brasil, Rússia, Índia e China, as bases produtivas e as estratégias desses países no comércio internacional se diferem bastante. Enquanto os elevados multiplicadores e índices de ligação chineses, principalmente no setor manufatureiro, demonstram que a estrutura produtiva desse país é bastante articulada, por outro lado, no Brasil, na Índia e, principalmente, na Rússia, há uma forte dependência da produção e exportação de commodities com baixo grau de processamento. Ademais, vale ressaltar que, independentemente do país analisado, os índices calculados revelam que o setor manufatureiro é o que apresenta maior inter-relação com o resto da economia. Assim, uma estratégia que tenha por finalidade galgar patamares expressivos de crescimento no longo prazo deve levar em consideração as vantagens de uma estrutura produtiva orientada para o setor manufatureiro, podendo ser ainda dinamizada quando associada a setores primários, como se verificou no caso da indústria petrolífera.
Guilherme Magacho e Igor Rocha são economistas, doutorandos pela University of Cambridge, Inglaterra.
Nelson Marconi é economista e professor da EESP-FGV.

terça-feira, 17 de junho de 2014

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Por Antonio Delfin Netto
Em linhas muito gerais, a redução da taxa de crescimento do Brasil no último meio século pode ser explicada por dois fatos muito simples e que dispensam as "grandes teorias" que costumam esconder as ideologias:
1) Uma redução dramática dos investimentos em infraestrutura, junto com um aumento não menos dramático da carga tributária bruta, combinados com uma formidável revolução demográfica, que se vê no quadro abaixo.
É claro que se trata de uma gigantesca simplificação, mas ela vai ao cerne do problema técnico do crescimento: o aumento da quantidade de capital físico (kWh, tornos, tratores, estradas, pontes, portos, comunicação, saneamento etc.) por trabalhador, que aumenta a sua produtividade e é, por definição, o próprio desenvolvimento econômico.

Está cada vez mais difícil prosseguir com a redistribuição de renda

Como o investimento líquido (isto é, o investimento bruto, deduzido da depreciação do capital físico utilizado para produzir o PIB) incorpora ao longo do tempo inovações e progressos tecnológicos, uma parte dele tem que ser destinada para educar a força de trabalho. O investimento público em infraestrutura e em educação, num ambiente de confiança e estabilidade, é o principal indutor do investimento privado, o que cria uma espécie de círculo virtuoso que sustenta o crescimento.
2) Enquanto existe mão de obra disponível (porque a população está crescendo depressa, ou a agricultura a está liberando, ou aumenta a participação da população na força de trabalho), o crescimento - produzido pelo aumento do capital físico por trabalhador - é auxiliado na produção do PIB pelo aumento dos trabalhadores incorporados ao processo produtivo.
Nos últimos 40 anos, a situação demográfica mudou completamente, devido à revolução produzida pelas mulheres: elas se educaram mais do que os homens, reduziram sua taxa de fertilidade (em 1970, cada mulher deixava seis filhos, hoje deixa menos de dois) e introjetaram que a única forma de ascensão social de seus filhos é a educação. Isso reforça a ideia de que hoje o desenvolvimento só pode vir ligado ao aumento dos investimentos públicos e privados para dar a cada trabalhador mais capital físico, que incorpora mais tecnologia, e educação, para que ele possa manipulá-lo de forma mais adequada.
Temos insistido que a combinação dos fatores para produzir o PIB é uma questão técnica. Ela se resolve pelo uso de mercados que, quando bem regulados, produzem um sistema de preços relativos, que estimula a busca do resultado produtivo mais eficiente. Com relação a isso, os avanços da microeconomia sugerem que decisões políticas apressadas, ou pouco sofisticadas, produzem (no longo prazo, porque as consequências vêm sempre depois...) resultados muito inferiores para o aumento do nível de bem-estar da sociedade.
Por outro lado, a distribuição do que cabe ao trabalho e do que cabe ao capital no que foi produzido (o PIB) é um problema político. Resolve-se pela ação do poder incumbente escolhido nas urnas numa democracia, condicionado pelas instituições que a controlam. A sua solução pode impor, portanto, restrições ao nível dos investimentos e, no final, ao próprio desenvolvimento, se não houver uma relativa harmonia entre o que se distribui e consome, e o que se acumula para aumentar a produtividade e trabalho. É isso que cria as condições para a continuidade do processo redistributivo.
O Brasil colhe os efeitos benéficos de uma redistribuição de renda que, até recentemente, foi facilitada pelos ganhos externos proporcionados pela melhoria de nossas "relações de troca", mas que está cada vez mais difícil de prosseguir, principalmente pelo aumento exponencial do seu custo fiscal.
A preocupação com a higidez da economia nacional está ligada à ausência visível da necessária revisão na própria política de proteção - às vezes contraditória a alguns setores -, que deveria ser acompanhada de uma profunda mudança de todo o sistema de apropriação e distribuição dos recursos pelo governo. É preciso começar com orçamento de base-zero, que elimine os milhares de programas que subsistem por inércia (uma vez que perderam a sua funcionalidade) e ir até a crítica cuidadosa da eficiência de todas as ações fiscais.
Sem providências dessa natureza, a possibilidade de continuarmos a reduzir o nível de desigualdade ainda existente e, ao mesmo tempo, acelerarmos o crescimento para maximizar o avanço do bem estar de toda a população, ficará cada vez menor.

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras

E-mail: contatodelfimnetto@terra.com.br